Na Rocinha, policiais reclamam de condição "desumana" de trabalho
Formados há três meses, soldados ainda recebem como alunos
O governo do Rio de
Janeiro está improvisando na área da Segurança Pública para instalar Unidades
de Polícia Pacificadora (UPP) em comunidades aonde não houve preparo
antecipado, como acontece na Rocinha. Curiosamente, isto ocorre em um ano
eleitoral.
Na Rocinha, o policiamento é feito, segundo admitiu a própria
Polícia Militar, por “estagiários” e não soldados. Por serem tratados ainda
como em “fase de treinamento”, os recém-formados recebem como recrutas, menos
do que é pago aos soldados. Mas, no fundo, todos exercem as mesmas funções de
policiar.
Alguns destes “recrutas”
que estão na Rocinha, como um deles - o policial “Y” - confessou ao JB, têm dificuldades
até para chegar ao 23º BPM, no Leblon, corporação à qual estão lotados. “A
gente precisa de dinheiro para trabalhar. Para eles (oficiais), não importa se
eu tenho aluguel, se eu preciso pagar a fralda dos meus filhos”, queixa-se. O
curioso, pelo que diz, é que "até a Companhia que se formou depois de nós
recebe vencimentos de soldados”, narra.
O improviso, porém, é maior. Além da falta de pagamento, o
policial "Y" enumera outras situações pelas quais passam
cotidianamente que, segundo entende, afetam a “dignidade” da tropa.
Com
ou sem instalações, os policiais dão jornada de 12h
em pé. A medida, segundo a PM, visa protegê-los contra possíveis
ataques. Se estiverem em viaturas, ficam ao lado delas. Mas muitos
chegam à
Rocinha em ônibus da corporação e tiram o serviço a pé. “Se sentarmos,
por dez
minutos que sejam, e algum superior nos ver, podemos ser presos”, revela
o policial
“Y”, que não se deixou fotografar e cuja identidade foi preservada para
evitar represálias. Segundo ele,
durante as 12 horas de jornada, uma única refeição é distribuída. Ao
contrário do que ocorre no Alemão, onde os PMs ainda têm o banheiro das
estações do teleférico que acabam usando, na Rocinha não há algo
parecido.
Segundo o policial “Y”, é preciso avisar antes de sair da
viatura para ir a um banheiro, do contrário é possível sofrer autuação por
abandono de posto. “Não temos banheiro. Ficamos a mercê da boa vontade dos
comerciantes para utilizar os sanitários deles. Pedimos pelo rádio para ser
liberados, e se um colega tiver um problema intestinal e não tiver tempo de
avisar, como faz?”
Ele insiste: "Não
temos a quem recorrer, ficamos a mercê da sorte”, diz a fonte do JB.
Pagamento
Os
policiais formados na Companhia Bravo, imediatamente lotados no Alemão e
na Rocinha, recebem o salário bruto dos alunos
do CFAP, cerca de R$ 1.040. Com os descontos, os vencimentos são
inferiores a mil reais. Benefícios como auxílio transporte - cerca de R$
100 -, e a gratificação prometida pela prefeitura do município - R$ 500
-,
também não foram pagos até hoje. No caso dessa gratificação, a
justificativa para não receberem é de que a Rocinha ainda não tem uma
UPP. Por isto, os policiais têm dificuldade até para chegarem ao
quartel. Como soldados, eles deveriam receber cerca de R$ 1.700 brutos.
Por causa da demora nesta promoção a soldados, ele relata um
drama pessoal. “Entrei no CFAP com meu nome limpo e saí sujo, devendo dinheiro
ao banco. Se não fossem meus amigos, nem telefone eu teria”, queixa-se. “Nem o
auxílio transporte, que é pouco, estamos recebendo", completa.
A surpresa da não promoção só foi conhecida quando os policiais
checaram a conta bancária na data em que deveriam receber seus vencimentos. “A
gente só soube do salário quando entrou na conta. Nem contracheque temos”,
afirma.
O policial “Y” critica a falta de informações dentro da
corporação. Segundo ele, recentemente um superior avisou que seria aberto um
processo de expulsão sumária da Polícia Militar para o soldado que faltasse a
um dia de trabalho. "Na maioria das vezes somos coagidos. O superior
informou que se tiver falta no próximo serviço, vamos responder junto a um
Conselho, em um processo de expulsão sumária da corporação, porque um companheiro,
numa eventualidade, não teve dinheiro para ir ao trabalho”, conta.
Equipamento
Em relação ao
equipamento, o policial deu informações similares às publicadas pelo JB, na segunda-feira, com base
em depoimento de outro PM. O armamento da "UPP da Rocinha", segundo
diz, é composto majoritariamente por pistolas com mais de oito anos de uso. A
quantidade de fuzis é ínfima, o que deixa vulneráveis os policiais no caso de
ataques violentos. E eles ocorrem, embora nem sempre sejam noticiados.
Outros recrutas da Rocinha narram que, há um mês e meio, uma
guarnição com quatro deles foi atacada por bandidos na Rua 1, uma das
principais vias de acesso da comunidade. Ao cruzarem um beco, os PMs em serviço
se depararam com cinco bandidos armados.
Os marginais abriram fogo. Foram mais de 60 disparos contra o
veículo da PM. Os calibres das armas eram PT 380, PT 40 e uma submetralhadora
de 9 mm. O fato aconteceu em um domingo, à tarde,
quando havia muita gente no local. Os policiais não atiraram para
preservar a integridade dos civis. O reforço pedido pelo rádio levou 30 minutos
para chegar. Mas era tarde, os bandidos já tinham fugido.
“Entrou
um armamento novo que também já está dando problema . Há pouquíssimos
fuzis, não chega a um por viatura. Isso não existe. Se sofrermos uma
investida de marginais com fuzis, vamos ter que procurar abrigo. Não há
como revidar”.
Tráfico de drogas e doação
A Secretaria de Segurança Pública do Estado já explicou que o
objetivo da pacificação das comunidades não é acabar com o tráfico de drogas,
mas erradicar a ostentação de traficantes com armas e seu domínio territorial
na região. O policial “Y” confirma, portanto, que o tráfico de drogas continua
naturalmente na favela. Embora os marginais não disponham de armamento tão
poderoso como no passado, ainda circulam com pistolas PT45, calibre capaz de grandes estragos.
“De vez em quando vemos alguém portando uma pistola PT45 dentro
da comunidade. Não tem ostentação, mas há
gente armada. O problema é a exposição”, relata. “Acredito que mesmo o nosso
fuzil não vá funcionar, é muito antigo. Posso até dar dois tiros, mas ele vai acabar travando."
O soldado conta ainda que os coletes usados pelos PMs na Rocinha
foram doados por uma empresa, cujo nome não revelou.
De armas não letais, eles dispõem apenas de spray de pimenta.
Seu uso, contudo, é controlado. No caso de um tumulto, de uma agitação
da multidão, a única reação cabível, segundo ele, é a “covardia”.
“Se houver uma grande confusão, teremos de dar uma de covardes (apenas assistir ao fato). Se atirarmos para o alto, responderemos por incitação. Respondemos pelo tiro dado a esmo”.
Rádios
Ele
também reclama que os rádios não funcionam, tal como
denunciou o outro policial na semana passada. Segundo o policial "Y", é
comum o equipamento estar quebrado. Ele acrescenta: “Há viaturas paradas
na
Rocinha que não funcionam. Para socorrer alguém temos de pedir apoio.
Faltam condições de
trabalho, pessoal e financeira”, resume.
Jornada e alimentação
Na Rocinha, o regime é de doze horas trabalhadas por 24 horas de
folga. Segundo o policial "Y", o contingente de um plantão só é
liberado com a chegada da rendição, o que costuma ultrapassar a
jornada de 12 horas, sem nenhuma compensação.
“A gente acorda às quatro da manhã para chegar ao batalhão na
hora, e só consegue sair da Zona Sul lá pelas nove horas da noite. É subumano
ficar doze horas em pé".
Outra reclamação é a comida. De acordo com ele, os soldados
recebem apenas uma refeição por dia. A quantidade é
econômica: arroz, feijão, carne e farofa. Além da escassez de alimento, os policiais precisam se revezar para comer.
“Recebemos
uma quentinha e não temos onde comer, nem na viatura. Temos de esperar o
colega almoçar para comer. Gastamos muita energia e aquele pingo de
comida não é suficiente para alimentar quem está de prontidão. Se não
tirarmos do bolso, ficamos só nessa
refeição”.
Curso de formação
O soldado também critica
o curso ministrado no CFAP, preparação “jogada” nos alunos da 5ª
Companhia Bravo. A matéria de sobrevivência
urbana, fundamental aos recém-ingressados para aprenderam a se
portar em comunidade, teve apenas uma aula. “Quem gosta de combate
treina por conta própria. Jogaram a gente lá dentro sem saber
nada da geografia e da tática militar necessárias", denuncia.
O trabalho na comunidades é dividido em três: na
‘visibilidade’, viaturas se espalham pelo local para monitorar a movimentação;
o Grupo de Policiamento de Proximidade (GPP) faz o patrulhamento por rua; e
o Grupo Tático de Policiamento de Proximidade (GTPP), estuda as ações
táticas tomadas em incursões. Sua turma não pôde escolher entre as três áreas.
“Muitas vezes cheguei para trabalhar como GPP e descobri que
estava em 'visibilidade', ou vice-versa. Sempre tínhamos que chegar mais cedo
porque os horários das funções variavam. Antes de ir
para a Rocinha, fizemos um serviço de praia. Esse foi o nosso estágio para vir
para a rua e defender a sociedade”, ironiza.
Em relação à falta de estrutura, há situações risíveis: “Podemos
parar uma moto que esteja irregular, mas não há quem reboque o veículo. Até
temos liberdade de ação, mas faltam condições para dar continuidade ao
trabalho”, diz.
Porte de arma
Apesar de ter o porte de arma, o policial “Y” ainda não conseguiu a
liberação do documento necessário para retirar o armamento de uma loja
legal. Para agravar a situação, diz, todo policial precisa portar a carteira de
militar. Em caso contrário, pode ser preso.
“É muito fácil alguém nos pegar do serviço ou até sequestrar.
Temos de ficar nos escondendo, essa é a realidade. A carteira de policial tem
de ficar escondida.”
Este quadro de
penúria e improviso o leva a concluir que há má aplicação dos recursos,
prejudicando o
serviço: "Estamos subutilizados. Somos como fantoches, para ser filmados
pela Globo dizendo: ‘olha, a UPP funciona, tem muito policial na rua'”,
critica. “Fiz concurso para melhorar de vida, não para ficar com o nome
sujo. Vai ter gente ficando maluca, e para fazer uma
besteira, como agredir alguém, não custa muito. A gente quer é
trabalhar”.